Contagem Regressiva
 Postado por: Rafael Lourenço do Carmo, em: 2.1.07.
Chuvoso. Como o primeiro dia do ano ousa ser assim, chuvoso? É um desrespeito com as pessoas que, como eu, estão o aguardando a tanto tempo, incansáveis. Esperamos 365 outros dias passarem, só pra ver chegar o primeiro dia do novo ano, e ele chega chuvoso. Por falar em esperar, alguém já observou como é interessante essa nossa mania de sempre esperar por datas? Vivemos quase que exclusivamente em função disso! Começamos o ano já esperando pelo carnaval. Ele passa e logo estamos esperando pela páscoa, ou pela festa típica da nossa cidade. Ela também passa, e já já estamos nós aguardando o feriado de primeiro de maio. E assim seguimos, o ano todo, esperando por feriados. A festa junina, a independência, a proclamação da república. Cada feriado nos dá mais fôlego para aguentar o dia-a-dia. Quando não têm feriados próximos o fim de semana é nosso consolo.

Acho que isso é uma forma que nosso inconsciente encontra de nos manter na linha, sem que enlouqueçamos com a estressante rotina que é a vida. É como se fosse um consolo: "Continue, falta pouco, vai! O fim de semana já vem pra você poder aproveitar!". Eu particularmente não sei viver sem isso. Enquanto não estou vivendo os momentos de feriados e finais de semana, estou fazendo uma das duas coisas: pensando nos bons momentos de feriados e fins de semana que já passaram ou planejando bons momentos para feriados e fins de semana que estão por vir. Se não fossem eles acho que minha vida não teria sentido. É, vivemos de esperar e lembrar feriados.

Ainda assim, com essa nossa enorme ânsia por todas as datas simbólicas, nenhuma delas é tão aguardada e festejada quanto a virada do ano. Parece que um ano de cansaço e sofrimento sempre acaba, e que um novo ano de alegrias e prosperidade começa. Pura ilusão. Vem ano, vai ano, é tudo igual. Não vamos ficar livres de trabalhar, não vamos ficar milionários da noite pro dia no novo ano, e os políticos vão continuar corruptos. O Brasil não vai virar potência mundial, e os preços vão continuar subindo, enquanto os salários caem. Ainda assim, ainda conscientes da ilusão que é tudo isso, aguardamos ansiosos o famoso dia primeiro de janeiro do ano que vem. Talvez toda essa ansiedade e resignação diante dessa ilusão consciente tenha um nome: esperança. Esperança de que vamos enfim conseguir comprar aquele carrinho que há tanto paqueramos. Ou de começar aquele negócio que com certeza absoluta vai nos fazer ricos e tranqüilos para todo o sempre (ainda que isso seja ilusão). Ou ainda de fazer aquela viagem que se planeja a tanto tempo. Ah! Tanta coisa boa esperada por tanto tempo, até que, enfim, chega o novo ano. Talvez por isso eu tenha ficado tão decepcionado, pra não dizer revoltado, com o aspecto do primeiro dia do ano: chuvoso.


O ó do borogodó
 Postado por: Rafael Lourenço do Carmo, em: 10.5.06.
Qualquer um que se disponha a escrever crônicas deve prestar atenção aos mais peculiares acontecimentos. Aqueles que passam batido por todo mundo, são os melhores assuntos sobre os quais podemos escrever. Foi numa dessas ocasiões que eu notei o fabuloso "ó do borogodó". O "ó do borogodó" é a gíria mais indefinida dentre todas. Ninguém sabe o real sentido dessa antiquíssima expressão. Muitos usam-na com um sentido pejorativo, como, por exemplo, quando a maria-fofoqueira fala pra joana-vida-dos-outros:

-Menina! Você viu aquela blusa da Amanda?
-Vi sim, achei o ó do borogodó, ridícula.

Entretanto, o ó do borogodó muitas vezes é usado como adjetivo positivo, e pode ser o mais lindo dos elogios. Imagine um casal de namorados, sentados em um banco branquinho de uma singela praça, à luz da lua e das estrelas, quando ele cochicha no ouvido dela:

-Você é o ó do borogodó, sabia?
-Ai, que lindo! Eu te amo - ela responderia -.

Bom, pra ambos os sentidos existe uma explicação lógica. Se paramos pra pensar, borogodó é uma palavra repleta de letras "o", o que tornaria o "ó" do borogodó apenas um outro qualquer, sem nenhuma projeção. Porém, o "ó" é o único "o" da palavra borogodó que é acentuado, o que torna ele único, diferente dos outros. Além disso, o artigo definido "o" antes da expressão destaca esse "o" em relação aos outros. É o ó do borogodó, não um ó do borogodó.
Ainda não cheguei a nenhuma conclusão acerca do sentido da expressão, mas tenho a séria impressão de que essa crônica ficou, digamos, o ó do borogodó.


O Reino Animal
 Postado por: Rafael Lourenço do Carmo, em: 30.4.06.
O Brasil é uma grande selva onde cada um é um animal. Os integrantes do legislativo são sanguessugas, que vivem de nosso trabalho e impostos. O executivo cada vez mais se parece com as hienas, e riem de nós, a cada vez que se safam de mais uma cachorrada aprontada por eles mesmos. No judiciário temos peixes abissais: enxergam muito pouco, apesar de terem um certo gene especial para ver, e ver muito bem, o que querem. Um país onde o apadrinhamento e o nepotismo são soberanos só pode estar enfestado de urubus, sobrevoando e esperando um pedaço na podre carne dos benefícios estatais.

A micro biota também é relevante por aqui. Cada vez nos vemos mais infectados pelo desrespeito mútuo e pela falta de educação. Infelizmente estamos longe de descobrir um antibiótico para tal mal. O que nos resta é, quando possível, buscar hospitais em outros países.

Entretanto nada disso merece tanto destaque quanto o ambiente marinho. Nele se encontram as duas mais importantes figuras do nosso reino animal, coincidentemente ou não, dois moluscos: um Lula, no governo, sem a menor perícia em governar, e um "polvo" brasileiro, já cansado de ser perseguido por tantos predadores.


Metacrônica
 Postado por: Rafael Lourenço do Carmo, em: 28.4.06.
Poucas pessoas conhecem angústia tão cruel quanto a sofrida pelo cronista. Pode parecer muito fácil falar de assuntos do cotidiano, com alguma reflexão, mas é uma das coisas mais torturantes que existem. Escrever, ao contrário do que muitos pensam, é treino, não dom. Como diz o velho clichê, 90% transpiração e 10% inspiração.

Entre escolher ou inventar um acontecimento cotidiano, até lapidar aquilo e transformar numa reflexão recheada de ironia e entrelinhas, existe um enorme trabalho mental, que queima muito mais fosfato do que muitas operações algébricas bizarras.

Mas a principal dificuldade do cronista é ter sobre o que falar. É amedrontador para alguém que escreve regularmente pensar que seus temas podem se esgotar, e que não haverá sobre o que falar daqui a um, dois ou três anos. É inevitável. Todo cronista, e digo sem medo de generalizar, sofre da eterna angústia pelo dia de amanhã. Não é como um jornalista, que senta e escreve o que aconteceu. O cronista tem que sentar, pensar, pensar, pensar mais, refletir, tirar conclusões, usar de todo seu sarcasmo, abusar de sua técnica com a linguagem, para depois, simplesmente, recomeçar a ser torturado, pensando sobre o que vai escrever na semana ou no mês que vem.

A sorte é que existe um assunto inesgotável e facílimo de ser tratado: a própria linguagem. Assim se formam as metacrônicas, onde o cronista fala da própria crônica e adia pra semana ou mês que vem o trabalho de ter que pensar em um novo assunto.


Decepção
 Postado por: Rafael Lourenço do Carmo, em: 10.3.06.
As ditas aulas "inúteis" são as mais ricas fontes de conhecimento em um universo escolar. Não pelo conhecimento que elas transmitem em si, mas pelo momento ocioso que elas criam, que nos leva a divagar sobre os mais estapafúrdios (porém interessantes) assuntos. Foi numa dessas aulas, mais especificamente em uma aula de gramática, que tirei substrato para a construção dessa crônica. Explico: a professora estava dando uma daquelas clássicas aulas sobre morfologia e sintaxe. Bocejos e cochilos tomavam toda a extensão da sala de aula. De repente vi algo que tomou minha atenção. Algo corriqueiro, que eu provavelmente via todos os dias, mas que simplesmente passara despercebido em todas as ocasiões. Uma crescente inquietação começou a crescer dentro de mim. Um anseio lendário causado pela curiosidade. Pode parecer banal agora, mas o que vi foi a palavra "coitado". Começei a tentar deduzir a origem etimológica da palavra, e associei instintivamente a palavra coitado à "coito". Faz todo sentido julgar digno de dó alguém que sofreu um coito, pelo menos para nós homens. Coitado então passara a ser, pelo menos pra mim, alguém digno de pena por ter sofrido o coito. Não podia existir explicação mais correta para a origem dessa palavra. Era perfeito. E eu vivi feliz por um período com essa explicação. Nada me faria acreditar em outra coisa.

Até que, alguns poucos dias depois dessa bendita aula, e outros poucos antes do momento em que esse texto foi escrito, minha ilusão foi por terra instantâneamente. Não sei porque estúpido motivo fui consultar a verdadeira etimologia da palavra. O fato é que fui, e, pra minha decepção, o significado era diferente do que eu esperava.

Coitado: aquele que sofreu a coita (mal ou desgraça).

Não sei quem foi o idiota que criou a palavra, mas até hoje sinto uma ponta de decepção quando penso que coitado não é quem sofreu o coito.


Corrupção, futebol e carros alegóricos
 Postado por: Rafael Lourenço do Carmo, em: 31.12.05.
É, então chegou 2006. Esse ano tem copa do mundo de futebol. Vamos todos assistir a todos os jogos, vibrar com as vitórias da nossa seleção e acreditar que somos uma nação vitoriosa. Enquanto isso as falcatruas políticas do nosso país vão continuar e nem vamos perceber.

O futebol no Brasil funciona como uma máscara para a corrupção. Uma fantasia que a esconde. Enquanto o povo celebra a competência do time nacional, os políticos fazem um verdadeiro arrastão do dinheiro público e ninguém está nem aí. A mídia só fala sobre esportes, esquece os outros assuntos, e até as pessoas mais engajadas políticamente deixam todo o resto de lado para acompanhar a copa. O país literalmente para em função dos jogos. A copa do mundo é como uma casca que proteje os poderosos bandidos de nosso país de qualquer exposição. E eles aproveitam, pode acreditar.

E assim continua a história do Brasil. A sociedade se distrai com o futebol, com as olimpíadas, com os jogos pan-americanos, com o Big Brother, e só se lembra das máscaras e fantasias quando o país já está, literalmente ou não, um carnaval.


E a realidade imita a ficção
 Postado por: Rafael Lourenço do Carmo, em: 30.12.05.
Que sempre houve corrupção em nosso país, todos sabemos. Aliás, todos sempre soubemos. A diferença é que hoje em dia a coisa está muito exposta. O governo afirma: "Apuraremos as fraudes, e puniremos os responsáveis". Acontece que as fraudes já foram apuradas. Todos já sabem quem roubou o que, quando e onde. Só falta punir. Você, caro leitor, tente dizer um nome de algum deputado, senador ou ministro, que foi reprimido por crime contra o patrimônio público. Nada não é? Agora vamos tentar nos lembrar de outra coisa: quantos nomes estiveram comprovadamente envolvidos em esquemas de corrupção, só esse ano? Roberto Jefferson, Delúbio Soares, Marcos Valério, José Dirceu, Paulo Maluf (pra variar), o próprio presidente Lula, entre outros.

Infelizmente, a população vai continuar sofrendo com os prejuízos da corrupção. Ela não vai acabar tão cedo. E não estou sendo pessimista, mas sim, realista. Explico: ninguém que está fora do poder pode fazer nada. E ninguém que está no poder quer fazer nada. Arrisco afirmar que não existe sequer uma pessoa que esteja no governo, seja no legislativo, executivo ou judiciário, que esteja disposta a mudar a situação.

No Brasil, a corrupção passou a ser permitida por lei. Ou melhor, não existe mais lei no país. O Brasil está como a novela das sete da globo, que se passa no velho oeste, em uma terra onde os poderosos é que fazem as regras. Difícil vai ser para os telespectadores da emissora perceberem que acabou a novela e começou o Jornal Nacional.